Uma tradição secular se repete na cidade de São Desidério, onde a comunidade católica segue uma série de rituais nos preparativos para as festas da padroeira e do Divino, que acontecem no próximo final de semana. Durante os quatro meses que antecedem aos eventos religiosos, os trabalhos são intensificados, envolvendo um número crescente de pessoas.
De acordo com o diretor municipal de Cultura, Vanderlino Barbosa, a junção em um mesmo final de semana das festas da padroeira Nossa Senhora Aparecida e do Divino Espírito Santo é resquício do tempo em que havia apenas um padre para atender toda a região da bacia do Rio Grande. “Ele passava por aqui apenas uma vez por ano, daí a razão das festas serem realizadas em datas tão próximas e, no caso da padroeira, fora da data oficial (12 de outubro). Este costume, apesar de agora ter um padre no município, é mantido pela comunidade”.
O início da tradição, que mistura o religioso ao profano, não tem uma data conhecida. Sabe-se, porém, que foi o capitão Montalvão quem trouxe a imagem de Nossa Senhora Aparecida e também quem incentivou que a festa do Divino, de raízes europeias, fosse implantada na então Vila de São Desidério. “Foi meu avô quem começou com tudo isso há mais de 100 anos”, diz o pedreiro Francisco Araújo Montalvão, 47 anos. Preocupado com a preservação dos rituais, ele está incentivando o único filho, João Araújo Montalvão Neto, de 9 anos, a se envolver nos preparativos.
Para a Festa do Divino, que segue os preceitos trazidos pelos portugueses ainda no tempo do Brasil Colônia, a equipe responsável pelos preparativos é sorteada na missa do ano anterior dentre os nomes disponibilizados pelas próprias famílias. A coordenação fica a cargo do chamado imperador. Como no ano passado o garoto Anderson Souza Neri, 12 anos, foi sorteado, quem está à frente de tudo são os seus familiares.
A estimativa é que no dia da festa mais de mil pessoas almocem na sua casa, que fica no povoado da Ponte de Terra (a cerca de 2 km da sede do município), depois da missa. Segundo a tia de Anderson, Lucinéia da Silva Batista, 20 anos, desde maio que começaram os pedidos de esmolas, etapa em que um grupo, acompanhado de música ao vivo, passa pelas casas dos católicos com a bandeira do Divino e recebe doações para o almoço e demais preparativos.
Até agosto, os pedidos foram feitos sempre nos finais de semana, na zona rural do município. “Desde o dia 1º de setembro que estamos tirando esmola na cidade”, diz Lucinéia, destacando a grande participação da comunidade. Para a família, que pela primeira vez foi sorteada com o cargo do ‘imperador’, “é uma honra participar desta tradição que aprendemos com os nossos pais e avós”.
Mudanças - Um dos pontos altos no cronograma dos preparativos é a pegada dos mastros, que ontem foram erguidos em frente à Igreja de Nossa Senhora Aparecida. Os troncos de 18 metros foram cortados no primeiro domingo de setembro e depois enfeitados.
O ritual da puxada do mastro é caracterizado por uma confraternização sob uma mangueira centenária, com música ao vivo dos grupos de reisado e samba-de-roda.
Segundo o capitão do mastro da festa da padroeira, João Francisco Dias, 42 anos, um mês antes, um grupo menor vai até o local, escolhe duas árvores, derruba, descasca e deixa sob a mangueira. Para a pegada dos mastros, que exige mais esforço para o transporte pela distância e dificuldades da trilha de 6 km, a mobilização é maior.
A mesclagem do profano ao religioso acontece em proporção ao número de participantes. A música com tambores e pífanos (rústicas flautas feitas de taboca) e a dança, marcadas pela animação são movidas, em grande parte, pela ingestão de bebida alcoólica, principalmente pinga brejeira produzida na região. Tudo acompanhado de churrasco e muita farofa.
Conforme o capitão do mastro do Divino, Otacílio (Tatá) Alves das Neves, 59 anos, “teve um tempo que o padre quis proibir essa pegada dos mastros, porque tinha gente que bebia demais. Hoje em dia está mais controlado e boa parte das pessoas não bebe nada”.
Originalmente só participavam homens, que passavam a noite no mato e pela manhã chegavam na cidade com os mastros. Uma das primeiras mulheres a participar foi a servidora pública Sandra Macedo, 35 anos. “Inacira foi a primeira que enfrentou o preconceito e participou em 1995. No ano seguinte eu vim com ela e mais duas mulheres. Foi difícil quebrar o tabu e até hoje tem gente que não aceita direito”, afirma. (Fonte: Jornal A Tarde)