Uma das cenas mais futuristas que já vi no cinema foi em Inteligência Artificial, filme de 2001 do diretor Steven Spielberg, e não se refere ao excesso que a mastigação não deu conta e fez soçobrar espinafre pela pálpebra inferior esquerda do menino David Swinton (Haley Joel Osment), na hora da refeição, mas sim o lixão em que se pode “pescar” um braço, uma perna ou outra parte do corpo substituída. O filme retrata o mundo em meados do século XXI, depois que as calotas derreteram e a maioria das cidades litorâneas estava parcialmente submersa. E único recurso que a humanidade conta para controlar essa catástrofe é um supercomputador, independente, dotado de inteligência artificial.
O lixo é algo com que convivemos, mas nem sempre nos acostumamos a fazê-lo de forma adequada, racional, civilizada. Associado ao que é desprezível, à sujeira, não raro a criança aprende, desde cedo, a se livrar o quanto antes dele: “Isso é lixo”, “joga isso no lixo”, “não vem com esse lixo pra cá não”, são ordens repetidamente ditas.
Essa estranha convivência, que faz com que o lixo seja vivenciado como se este fosse algo extraterreno, nos leva a encarar o povo da varrição - garis, em carioquês, por conta da história de um senhor que tinha o sobrenome gari e vivia de limpar as ruas no Rio de Janeiro - como cidadãos de terceira classe. Antes da recente crise do emprego e da instituição dos concursos, para se alcançar um desses postos, o cargo de gari era praticamente reservado aos negros, pois ninguém queria ter uma profissão que os aproxima dos urubus, cujo papel saneante, devido à forma como se alimentam, é bastante conhecida.
Embora tido como algo abominável, o lixo, todos sabemos disso, tem valor agregado e é permanente fonte de preocupação para os governos. E os catadores de lixo, que ganharam essa nomenclatura digamos quase recente de recicladores, sabem o quanto. E tem mais: o lixo nos acompanha em casa e nos shoppings, nas praças e nos supermercados, nas escolas, nas festas, então, nem se fala. O lixo nos acompanha até na chamada hora fatal.
Só que nessas ocasiões, com exceção do último exemplo, as pessoas convivem numa boa com o lixo: os automóveis e ciclomotores, as embalagens as mais diversas, as flores mais variadas também, as cascas das frutas e frutos, os cigarros. E por aí vai. Mas quando a embalagem deixa de conter o produto, as flores murcham, os endocarpos das frutas e frutos são consumidos e o cigarro chega na guimba, o lixo ganha outra conotação e vira problema. Problema pessoal, das cidades, problema mundial. E desse problema, a que quase sempre nos referimos às toneladas, não está livre sequer o espaço sideral, com algumas de suas órbitas saturadas por detritos espaciais.
O lixo também já é fonte de tensões diplomáticas. E não nos deixa mentir o recente imbroglio envolvendo o Reino Unido e o Brasil, com relação aos contêineres contendo aparas as mais diversas, assim como as imagens de lixões tecnológicos em alguns países do Continente Africano. Um problema que cresce na mesma proporção em que se consolida o individualismo das pessoas: elas querem consumir e quando este sonho se realiza, o lixo associado a esta prática deixa de ser um problema dele, o consumidor. O zelador do prédio que se vire; o gari que se dane; o reciclador dá um jeito nisso.
Sem nos atermos à questão da miséria absoluta e que leva a infortúnios como o recente esmagamento de uma criança por um dos tratores responsáveis pela prensa dos materiais em um lixão de Maceió, pois ele teria sido vencido pelo cansaço de um dia inteiro à cata de víveres, ou à quantidade de gente que, ao longo do mundo, se “alimenta” dos restos levados para os aterros sanitários, o lixo requer tratamento profissional pelas autoridades públicas. E mais do que isso: pressupõe, necessariamente, a educação ambiental das novas gerações para a convivência racional com o lixo.
Evidentemente, que muito já se caminhou no que diz respeito à reciclagem de itens que vivem a emporcalhar a Terra, mas devemos exigir que os utilizadores do plástico como embalagem sejam mais ativos e consequentes em relação às mensagens pró-educação do usuário nos rótulos de seus produtos, enquanto a coleta seletiva não se universaliza. E as usinas de lixo também.
Além disso, cabe aos governos, que tanto gastam com publicidade e propaganda, utilizar os espaços de mídia a que têm direito para veicular mensagens relacionadas à educação para o lixo ou com o lixo. Não há por que os governos federais fazerem de conta que o lixo é um problema apenas das companhias de limpeza das cidades, principalmente diante da população deseducada que temos.
No plano individual, não seria muito pedir que as pessoas dediquem ao meio ambiente mais direto, a rua em que mora - para que pare de vicejar a falsa idéia de que meio ambiente está diretamente relacionado à preservação da Mata Atlântica e dos mananciais - se não tanto, boa parte do zelo que mantém com seus bichos de estimação, principalmente os cachorros. Apenas para ficar em um exemplo, o que somos obrigados, no dia a dia, a desviar dos “vidros” deixados pelos donos desses animais nas ruas das cidades não é brinquedo não.
“Vidros” que acabam secando, se transformando em pó, contaminando o ar, os são diluídos pelas chuvas e vão para as galerias de águas pluviais e se somam às do rio ou da represa que abastece as nossas cidades. Águas batizadas e que chegam às torneiras de nossas casas, depois de serem quimicamente lavadas.
Se você chegou até aqui e está achando que sou um defensor da educação pelo lixo, acertou. A Terra está esquentando, as geleiras derretendo, e há até, no mais recôndito dos mares uma imensa ilha de dejetos, espécie de redemoinho que remete ao brasão roto da modernidade, mas o que tem de gente que pouco está se lixando para as condições de vida no planeta, não é pouca não.
* Edmilson Silva é jornalista, especializado em Ciências e colunista de Plurale, colaborando com um artigo por mês. (edmilson.oliveiradasilva@gmail.com) (Fonte: Envolverde/Revista Plurale)