Sem consenso, piso salarial de professor vai passar de R$ 1 mil

O piso nacional de R$ 950 para os professores da rede pública do ensino básico em todo país chega a 2010 do mesmo jeito que passou em 2009: sem consenso, com dúvidas jurídicas e com prefeituras e Estados reclamando da dificuldade financeira de cumprir a lei. O cerne da discussão trata da real capacidade de caixa dos governos, principalmente dos pequenos municípios, para estar em dia com a Lei nº 11.738, de julho de 2008, que instituiu o pagamento de pelo menos dois terços dos R$ 950 desde janeiro de 2009 e integral a partir de 1º de janeiro de 2010, respeitando a carga semanal de trabalho de 40 horas.

O que já era difícil vai ficar ainda mais complicado, pois será definido hoje o valor do piso para 2010. Ele deve ficar entre R$ 1,030 mil e R$ 1,100 mil. Pela lei do piso, ele deve acompanhar o reajuste do valor custo-aluno do Fundeb, ontem estimado em 15,94%. O Ministério da Educação, porém, encaminhou uma consulta de interpretação da lei à Advogacia Geral da União (AGU), para entender se o reajuste deve ser feito pelo valor projetado ou pelo efetivamente aplicado. Se for pelo aplicado, o reajuste pode ser inferior aos 15,94%, que resultariam no piso de R$ 1,1 mil para 2010. Em entrevista à rádio Gaúcha, ontem, o ministro da Educação, Fernando Haddad, estimou o novo valor entre R$ 1,030 mil e R$ 1,040 mil.

Para os próximos anos, o reajuste pode seguir outra regra. A Câmara dos Deputados aprovou, em 16 de dezembro, um projeto de lei que define esse reajuste pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor (INPC). O projeto, no entanto, ainda não foi aprovado pelo Senado Federal. Segundo dados do Ministério da Educação, o Brasil tinha, em 2007, 1,8 milhão de professores na educação básica na rede pública.

O presidente da União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime), Carlos Eduardo Sanches, afirma que a maioria das prefeituras brasileiras só pôde cumprir a obrigação este ano por causa de uma liminar do Supremo Tribunal Federal (STF) que permitiu somar salário-base com vários tipos de gratificações - comuns na carreira do professor público - para compor o valor estipulado pela lei do piso do magistério.

Na interpretação do MEC, as gratificações, como anuênios e outros benefícios, devem ser complementares ao piso de R$ 950 reajustado - e não compor o valor mínimo da remuneração dos professores. A decisão do STF foi preliminar e esse entendimento deverá ser mantido até o julgamento final da Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin) 4167.

Paulo Ziulkoski, titular da Confederação Nacional dos Municípios (CNM), expõe o dilema orçamentário das prefeituras. "Elas vão cumprir o piso porque são obrigadas, é a lei. Mas serão obrigadas a tirar recursos de outras áreas, que também têm necessidades, para honrar esse compromisso", aponta o dirigente.

"A absoluta maioria paga o piso hoje em forma de complementação, seja via gratificação por tempo de serviço ou pela formação, seja pelo que chamamos de penduricalho, que não entra no cálculo do salário-base do professor, que acaba se aposentando com um rendimento muito pequeno", complementa Sanches, da Undime. Ele também é secretário municipal de Educação de Castro, cidade paranaense a 160 quilômetros de Curitiba. No local, diz, a situação é desfavorável. "Estamos cumprindo o piso ainda abaixo dos R$ 950 com complementação e aguardando com cuidado o fechamento do ano e o cenário econômico que se desenha. É preciso ter prudência. Se damos aumento para um, tem que dar para todo mundo", pondera Sanches.

Neste ano, Colatina, no Espírito Santo, precisou aumentar em 15% os salários dos 160 professores novatos e sem diploma para chegar nos dois terços do piso. O contracheque passou de R$ 483 para R$ 556 para 25 horas semanais de trabalho. "Proporcionalmente está dentro da lei. Fizemos uma readequação da carreira e tivemos que optar por não dar reajuste aos mais de mil professores mais antigos que já ganham na margem ou acima do piso, porque não tínhamos o recurso financeiro em caixa. Tivemos que fazer uma economia danada", conta Cidmar Andreatta, superintendente administrativa da Secretaria Municipal de Educação de Colatina. Para 2010, quando entra em vigor o piso integral e sem a tese da complementação, ela informa que uma comissão formada por trabalhadores, sindicato e governo vai estudar os reajustes. "Estamos esperando a revisão do MEC para começar os trabalhos."

No interior da Paraíba, no município de Itapororoca, José Maia de Oliveira, professor de história no ensino fundamental do Colégio Municipal Henrique de Almeida, reconhece que só recebe conforme o piso porque terminou o ensino superior. O historiador ganha R$ 764 brutos por uma carga de 25 horas semanais, preenchida em três dias, porque Almeida tem um segundo emprego na capital João Pessoa, onde vive com a família. "Vou para a escola na segunda, volto na terça-feira à noite e retorno a Itapororoca na sexta. Não é longe, dá uns 50, 60 quilômetros, mas vou de carona porque sai mais em conta", conta Oliveira. "Tudo para economizar os R$ 8 da passagem. Sobreviver com remuneração de professor está difícil", completa.

Para o presidente da CNTE, Roberto Leão, a liminar do Supremo, que também suspende o tipo de remuneração pelo período dedicado a atividades fora da sala de aula, instalou uma confusão generalizada. "Para alguns, a carga semanal é de até 40 horas, para outros, de 40 horas. Vamos ter um início de ano com muita disputa e muita confusão porque o STF não decidiu o mérito da ação direta de inconstitucionalidade dos cinco Estados [RS, SC, PR, MS e CE], então os R$ 950 serão pagos do jeito que cada governante quiser", critica.

O ministro da Educação, Fernando Haddad, diz que está atento à dinâmica orçamentária dos municípios, mas desconhece problemas no cumprimento do piso. "Não temos conhecimento de nenhum caso concreto de não pagamento, o que pode ensejar várias ações: o professor pode ingressar na Justiça, dar queixa no Ministério Público local ou no Tribunal de Contas do Estado", orientou.

Além da questão das complementações, a Undime, entidade, que congrega as secretarias municipais de Educação do país, prepara uma proposta de medida provisória (MP) para apresentar ao governo federal, solicitando um repasse de R$ 400 milhões do Fundo de Participação dos Municípios (FPM). O dinheiro, vinculado apenas à educação, seria usado para dar cobertura ao esforço que as prefeituras já fizeram para aumentar salários ao longo de 2009, quando houve queda de arrecadação generalizada e redução de R$ 9 bilhões nos repasses federais do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb).

"A educação sofreu muito com a diminuição do custo-aluno do Fundeb em 2009 [que passou de R$ 1.350,90 para R$ 1.221,34] e a queda na arrecadação. Isso motivou a proposta de MP dos R$ 400 milhões só para a educação. Pensamos nisso porque não dá para esperar o Congresso. Alguém pede vistas e aí vai morrer na casca. Mandamos para o MEC e a Casa Civil e também para o Planejamento, porque é basicamente uma questão definida na área econômica. O [ministro do Planejamento] Paulo Bernardo se mostrou simpático à ideia", revelou o dirigente da Undime.

Sanches disse ainda que a entidade está preocupada com o percentual de reajuste do piso e defende que ele apenas acompanhe o INPC, que deverá fechar 2009 na casa dos 4%. "Queremos aumentar o salário, mas a realidade orçamentária e da arrecadação muitas vezes não permite", argumentou Sanches, temendo que o valor a partir de 1º de janeiro seja próximo a R$ 1,1 mil.

O ministro da Educação disse que ainda não teve tempo de avaliar a demanda dos municípios pela parcela de R$ 400 milhões do Fundo de Participação dos Municípios (FPM). "Esta é uma demanda recentíssima, mas é bom lembrar que foram feitos repasses de R$ 2 bilhões do Fundo a título de perda de arrecadação. Houve uma demanda para vincular 25% desse total à educação, mas não fomos atendidos pelo Congresso", frisou Haddad. Ele lembrou que o uso do INPC para reajustar o piso já foi acatada pelo MEC. "Depende do Congresso agora. Isso já está tramitando há mais de um ano, passou pela Câmara na semana passada e agora tem de passar pelo Senado."

Já Roberto Leão, da CNTE, cobra correções anuais desde a entrada em vigor da lei. "Na nossa interpretação, o piso foi instituído em 2008, então o valor deveria ter sido, com o devido reajuste sobre os R$ 950, de R$ 1.132,40 já em 2009. Para 2010, defendemos R$ 1.338,50."

Cesar Callegari, presidente da Câmara de Educação Básica do Conselho Nacional de Educação, explica que a interpretação da CNTE foi ponderada pela Advocacia Geral da União (AGU), que decidiu adotar os argumentos do governo e manter os R$ 950 para este ano. "O piso pode não ser realidade em 100% do país, mas já é amplamente tomado como referência, por isso é importante que sejam dadas condições para equalizar a desigualdade de condições entre as cidades visando ao cumprimento da lei. Neste sentido, o fim da DRU pode ser uma boa ajuda, pois vai liberar R$ 9 bilhões para a educação", pondera Callegari.

A Confederação Nacional dos Municípios questiona a distribuição de recursos da União prevista para que as prefeituras honrem o piso. De acordo com a Lei nº 11.738, 10% da complementação de recursos federais do Fundeb deve ajudar a compor o pagamento dos R$ 950 em cidades de dez Estados brasileiros com a menor média nacional de arrecadação para a composição do índice custo-aluno.

Paulo Ziulkoski discute as regras dessa reserva, que somou R$ 690 milhões em 2009. "O MEC diz que há garantia da União para complementar o piso nos municípios mais pobres, mas ela nunca vem. É propaganda enganosa porque as condições são terríveis", critica. Segundo ele, os critérios para receber a complementação são inatingíveis. "Poucos municípios poderiam cumprir essas regras, que implicam aumentar os investimentos em educação para 30%, sendo que a regra constitucional é de 25%, e ter um órgão gestor dos recursos da educação, que significa criar nova estrutura, portanto mais gastos", aponta Ziulkoski.

O ministro Fernando Haddad argumenta que não cabe só ao MEC decidir sobre o assunto. "É uma comissão intergovernamental que decide. O MEC é minoritário. Em 2009 foram feitos apenas quatro pedidos de complementação, mas eles chegaram descaracterizados, não justificando o repasse", explicou o ministro. (Fonte: Valor Econômico)