Pelo texto da emenda, no momento da expedição do precatório, deverá ser abatido o valor correspondente aos débitos constituídos contra o credor original pela Fazenda Pública devedora. Ou seja, trata-se de uma compensação entre o poder público e o titular do precatório. Lembrando que a cessão de crédito é plenamente válida nos termos da legislação, imagine-se a situação de alguém que, antes da entrada em vigor da EC, tenha adquirido um crédito contra a União, decorrente de decisão judicial transitada em julgada, mas que ainda não tenha acarretado a expedição do respectivo precatório.
Tal situação, longe de configurar mera especulação, é bastante frequente, já que em um passado recente (pré-quebra do Lehman Brothers), houve no mercado várias operações de cessão de créditos contra a União, os quais gerarão precatórios a serem expedidos posteriormente à introdução da EC. Esse alguém, hoje, deve se perguntar: sendo o precatório expedido posteriormente à EC, pode haver a compensação com os débitos fiscais constituídos contra o credor original, se a cessão se deu antes da promulgação daquela emenda? Juridicamente, a resposta só pode ser negativa.
Em primeiro lugar, porque entendemos haver uma atecnicidade na emenda constitucional, no que se refere à expressão credor original, uma vez que, em casos de cessão dos direitos de crédito, previamente à expedição do precatório, o credor do título não é o credor original. Segundo a relatora da proposta que originou a EC, essa norma tinha como objetivo tornar "mais clara a regra de compensação financeira nas hipóteses em que a fazenda pública for, ao mesmo tempo, devedora e credora do titular do precatório."
Não obstante a clareza do relatório, a EC, da forma como redigida, daria respaldo à pretensão da Fazenda Pública de compensar o crédito detido pelo credor do precatório (ou seja, aquele que tem o direito de receber os valores devidos pela Fazenda Pública), com débitos do credor original (ou seja, o cedente). Tal pretensão violaria um dos requisitos do instituto da compensação, qual seja, a existência de credor e devedor recíprocos. De fato, não se permite que ocorra compensação entre créditos e débitos que não sejam, reciprocamente, devidos e/ou detidos pelos mesmos sujeitos de direito.
Em segundo lugar, nesses casos, a compensação entre os débitos do cedente e o crédito detido pelo cessionário, no momento em que este é materializado em precatório, viola o princípio constitucional da segurança jurídica, porque afeta uma cessão anterior, que se considera um ato jurídico perfeito e acabado, que não pode ser afetado por norma posteriormente inserida no ordenamento, ainda que de natureza constitucional. Portanto, nosso entendimento é no sentido de que a emenda, nesse aspecto particular, não pode ser aplicada a precatórios oriundos de créditos objeto de cessões realizadas anteriormente à sua edição.
E a validade das cessões de precatórios até o momento realizadas é corroborada pela própria EC, no seu artigo 5º. Ora, se o constituinte derivado manifestou a sua intenção de convalidar as cessões de créditos já realizadas, não é coerente que tais cessões sejam prejudicadas pela mesma EC. Logo, entender que e a emenda é aplicável para atingir cessão de crédito ocorrida antes de sua edição, ainda que não se tenha a expedição do competente precatório, seria o mesmo que admitir a possibilidade de retroação da norma a situações já consolidadas e convalidadas no tempo, violando frontalmente o princípio da segurança jurídica, acima referido. E não é só. Há outro aspecto relevante da EC que interessa ao cessionário de crédito decorrente de decisão judicial transitada em julgado contra a União.
De fato, no momento da cessão, o ativo (o crédito) certamente foi precificado pelas partes considerando-se, dentre outras questões, os critérios de atualização monetária aplicáveis, na forma daquela decisão judicial condenatória. No entanto, a EC fixou o critério de atualização monetária do precatório pelo índice oficial de remuneração da caderneta de poupança. A respeito dessa questão, nosso entendimento é no sentido de que a emenda não pode atingir e, consequentemente, não pode alterar os comandos de sentenças judiciais já tornadas imutáveis em razão do trânsito em julgado, sob pena de haver afronta direta ao artigo 5º , inciso XXXVI, da Constituição Federal, que expressamente estabelece que a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada.
Logo, tais alterações na forma de correção monetária de precatórios, não obstante tenham sido inseridas ao texto da Constituição por meio de emenda, são flagrantemente inconstitucionais, pois os critérios a serem considerados para atualização do precatório são aqueles fixados pela decisão de mérito, impassível de ser alterada por norma posterior.
Por fim, cabe esclarecer que ambas as questões são objeto de ação direta de inconstitucionalidade (Adin) promovida pela Ordem dos Advogados do Brasil, na qual se espera que o Supremo Tribunal Federal (STF) afaste do ordenamento essas evidentes inconstitucionalidades. (Fonte: Fabio Ozi, Valor Econômico)