Um sistema universalizado e gratuito de saúde pública, como o adotado constitucionalmente pelo Brasil e materializado pelo Sistema Único de Saúde (SUS), tem duas características principais: é democrático e justo com os cidadãos, mas, por outro lado, exige fontes de recursos crescentes para funcionar.
Nesse último caso, a lógica é incontestável. Ano após ano a população se multiplica, novas doenças são identificadas e procedimentos, adotados, tratamentos mais complexos são desenvolvidos e a expectativa de vida aumenta. Todos esses aspectos, relacionados ao desenvolvimento da sociedade, contraditoriamente pressionam o sistema de saúde, que necessita de mais dinheiro para continuar atendendo a toda a demanda, oferecendo recursos médicos mais modernos (e eficientes) e ampliando a cobertura.
Como exemplo desse aumento de abrangência, podemos citar as cirurgias estéticas, e até de mudança de sexo, atualmente realizadas pelo SUS. Esses tipos de intervenções e, consequentemente, de gastos, não faziam parte do planejamento quando o SUS foi criado, há 20 anos. Essa situação se repete periodicamente e vai continuar ocorrendo no futuro. Sem dúvida, são ganhos para a população, que recebe um atendimento mais amplo e qualificado, mas custa dinheiro.
A conclusão, portanto, é simples. O orçamento para a saúde precisa de acréscimos permanentes e crescentes e, mesmo assim, nunca se chegará a um número suficiente. Não é um raciocínio mercantilista, mas apenas realista diante da natureza da questão. E deve ser respeitado, pelo menos se a intenção é oferecer um sistema público que funcione na prática e com qualidade, e não apenas utilizar o conceito de saúde universal para publicidade.
Diante disso, é preocupante observar o ministro da saúde informar que a previsão de orçamento para 2010 "é a pior possível". Segundo José Gomes Temporão, é provável que os reajustes não alcancem a metade da média histórica dos últimos sete anos, já que o repasse está condicionado ao crescimento econômico do País - regra que, indiretamente, confia no fortalecimento da saúde dos cidadãos em épocas de recessão econômica. E o resultado do PIB do 3º trimestre confirma essas expectativas.
Se, como foi dito, é necessário aumento orçamentário permanente apenas para manter o atendimento já realizado, diminuir os reajustes é a receita para o colapso. Infelizmente, em saúde não há como economizar dinheiro. Nem é preciso dizer o que significa, na prática, contenção de despesas nessa área.
No Brasil o quadro ainda é mais grave. A redução orçamentária para 2010 já seria um problema se a assistência tivesse sido satisfatória em 2009. Por aqui, no entanto, é necessário muito investimento para recuperar uma estrutura que vem sendo deteriorada há anos. A questão não é aumentar o orçamento para manter o nível do atendimento, mas investir pesadamente para estabelecer um sistema digno, do qual ainda estamos longe.
De acordo com o que o próprio ministro disse aos jornais, "a situação do financiamento da saúde continua crônica do ponto de vista da falta de uma sustentabilidade econômico-financeira de longo prazo que lhe permita incorporar novos procedimentos, novos medicamentos, ampliar centros de tratamentos especializados".
Neste cenário, o colapso da saúde no Brasil está muito próximo. Não é preciso ser especialista para concluir isso. Apenas aqueles que fecham os olhos para a realidade dos hospitais que prestam atendimento pelo SUS não conseguem enxergar esse naufrágio iminente.
No caso das Santas Casas e dos hospitais beneficentes, que respondem por cerca de um terço dos leitos hospitalares do País e realizam mais de 185 milhões de atendimentos ambulatoriais de pacientes da rede pública, a situação é alarmante. Há anos essas unidades têm trabalhado com um déficit de 40% nos procedimentos realizados pelo SUS.
Esse quadro produziu uma dívida que as entidades não conseguem mais suportar. Algumas fecharam e várias estão diminuindo sua capacidade de atendimento para o SUS. É preciso, urgentemente, direcionar verbas para corrigir essa distorção. Mas, pelo que se pode observar, o problema vai se agravar.
E a solução não se resume ao aumento dos números. Existem questões estruturais que também devem ser resolvidas para garantir a boa aplicação do dinheiro. Nesse caso, a principal é a regulamentação da Emenda Constitucional (EC) nº 29. Sem essa medida, pouco importa a quantidade de recursos destinada para a saúde. Simplesmente porque, atualmente, não existem regras para definir o que são procedimentos de saúde, e o dinheiro para hospitais e pacientes pode ser usado para uma variedade interminável de ações governamentais, como obras de saneamento básico ou incrementos em ações sociais. Por isso, mesmo que o Orçamento da União destine sua maior fatia para a rubrica "saúde", não quer dizer que todo o valor seja realmente investido em atendimento médico para a população.
É recomendável, também, incluir na atual discussão o incentivo às Organizações Sociais de Saúde (OSS), entidades privadas sem fins lucrativos encarregadas de gerenciar hospitais públicos. Trata-se de um modelo que tem apresentado seguidamente resultados positivos na gestão dos recursos e na qualidade dos serviços. Em São Paulo, unidades com essa forma de gestão atenderam 25% a mais de pacientes com economia de 10% de recursos.
As soluções para o financiamento para a saúde devem obrigatoriamente respeitar a lógica de orçamento crescente e a boa administração dos recursos públicos. Sem isso, o colapso está mais próximo do que se imagina e a atitude mais honesta será admitir que o Estado fracassou em sua nobre intenção de oferecer atendimento público gratuito e de qualidade para a população. (Fonte: José Reinaldo Nogueira de Oliveira Junior no jornal O Estado de S.Paulo)